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"Woman Of Faces”: Celeste entrega novo álbum cheio de identidade e melancolia

Eis uma artista que, há quatro anos, experimentou o tipo de sucesso que pode tanto alavancar quanto destruir uma carreira promissora, com um nível de êxito comercial capaz de confundir qualquer artista. Mas dar tempo para a poeira baixar foi a melhor decisão de Celeste, que agora ressurge com um álbum que exemplifica precisão e reflexão.


Foto: Divulgação
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Confesso que estava bastante ansiosa para o lançamento desse álbum, ainda mais depois das tracks liberadas antecipadamente (que já davam um gostinho do que estava por vir). Não foi à toa que “Time Will Tell” ficou entre as minhas músicas mais ouvidas do último mês. 


Celeste é uma artista extremamente incomum e muito boa no que faz. O novo disco me fez lembrar que, por trás dos grandes sucessos, sempre reside a essência de um artista verdadeiramente profundo. E esse é um desses casos.


Trazendo uma mistura de Billie Holiday e Amy Winehouse, Celeste foi aclamada pela cena do revival do soul-jazz britânico há cinco anos atrás. Não que ela seja uma cópia de alguém, de forma alguma: sua voz é simplesmente inconfundível, com suas próprias forças e estilos. Mas, de qualquer forma, ela então com 26 anos - contrariando as expectativas da indústria - levou seu álbum de estreia “Not Your Muse” ao primeiro lugar das paradas, tornando-se a primeira artista feminina britânica em meia década a alcançar esse feito.


Essa trajetória, que incluiu a vitória na votação Sound of 2020, o prêmio BRIT Rising Star, indicações ao Mercury Prize e ao Oscar, chegou a um fim inesperadamente quando os planos de turnê evaporaram durante a pandemia.


Com isso, toda a força que ela havia construído com baladas envolventes como "Strange" deu lugar a uma longa e dolorosa incomodação para seu sucessor - "Woman Of Faces". Entre sessões de gravação viajando de Los Angeles para Londres, o disco que ela planejava finalizar em 2022 continuava sendo adiado.


Segundo ela mesma, estava se afundando em desilusões amorosas e entrou em depressão após o término de um relacionamento. As pressões da gravadora não ajudaram. A expectativa da Polydor de que ela publicasse constantemente nas redes sociais e incluísse músicas específicas na lista de faixas a fez se sentir sem apoio.


Esse contexto tenso permeia os temas do álbum - perda, identidade feminina e tecnologia - e é impossível dissociar a música dessas batalhas.


Foto: Divulgação
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Recentemente, Celeste falou abertamente sobre seus desentendimentos com o produtor, Jeff Bhasker, cujo currículo impressionante inclui trabalhos com Harry Styles, Taylor Swift e Kanye West. Ela encomendou arranjos de cordas ao compositor e maestro britânico Robert Ames, mas Bhasker “não me deixou usá-los”.


No mês passado, ela usou o Instagram para protestar que sua gravadora estava demonstrando “muito pouco apoio ao álbum que fiz” e ameaçou rescindir o contrato caso ela “não incluísse duas músicas específicas” na lista de faixas.


Essa acusação causou certa surpresa, principalmente porque Celeste é contratada pela mesma gravadora da qual a cantora Raye reclamou em 2021, insistindo que eles se recusaram a permitir que ela lançasse um álbum de estreia. Raye, posteriormente, deixou a gravadora, lançou o álbum por conta própria com grande sucesso e observou que as gravadoras talvez se beneficiassem mais permitindo que os artistas “sempre criassem com um propósito, em vez de apenas com o objetivo de vender”.


O álbum basicamente documenta essa jornada de Celeste, marcada pela dor, recuperação e resiliência pessoal, mesclando elementos orquestrais com uma abordagem íntima, reflexiva e honesta da cantora. Honestamente, o resultado final é uma obra deslumbrante.


Os temas e essa estrutura orquestral do álbum são perfeitamente harmonizados com a voz bela - e quase assombrosa - de Celeste. E é essa voz o ingrediente mágico desta coleção de histórias verdadeiramente poderosas.



Confira a track by track:


On With The Show


O desmoronamento do relacionamento que inspirou este segundo álbum pode ser quase ouvido na faixa de abertura, "On With The Show". A intensidade cresce com um drama cortante, enquanto sua voz meticulosa leva a canção a domínios profundamente emocionais.


É íntima e cinematográfica ao mesmo tempo, e quase se pode sentir a tensão sonora em que nós, como indústria musical, a colocamos. É tão grandiosa quanto esperamos dela, mas ela não se deixa negligenciar ao se manter fiel a essa expectativa.



Keep Smiling


A segunda faixa do álbum continua explorando ao máximo os arranjos de cordas arrebatadores. As mudanças repentinas de dinâmica, a voz de Celeste subindo de um sussurro quase inaudível até a beira de falhar, para depois retornar ao seu estado original (fazendo tudo com um desenvoltura gigantesca) é absolute cinema. 



Woman Of Faces


A faixa-título “Woman of Faces” estabelece as bases desse disco. Sobre cordas majestosas, Celeste esboça uma personagem que “trabalha tanto apenas para ser substituída”. Ela canta sobre um mundo que a julga pelas máscaras que usa: “Quem realmente conhece a mulher de máscaras? Nem você, nem você, nem eu”, transformando a canção em um comentário sobre as máscaras que lhe pediram para usar.


O refrão adverte para não se chocar quando essa mulher cuspir na rima de ontem e se recusar a seguir o roteiro. Em vez de anseio romântico, a faixa lida com autonomia e autodefinição. A escolha de linguagem de Celeste é direta: ela não romantiza sua transformação, mas a usa como uma negociação complexa e contínua entre quem ela foi e quem ela tem permissão para ser. 


O arranjo, com seu crescimento e ausência de percussão óbvia, segue sua linha, fazendo com que o ouvinte se concentre na tensão em sua interpretação mais do que no ritmo.



Happening Again


“Happening Again” é terna e melancólica. A quarta faixa gira em torno do verso “Esses sentimentos com os quais me identifico crescem com más intenções”. É uma das confissões mais cruas e sinceras do álbum: ela admite que as emoções que nutre (nostalgia, ciúme, esperança) continuam a machucá-la.


Os versos oscilam entre a autotraição (“Estou perdendo minha defesa de vez em quando”) e uma aceitação resignada de que “de qualquer forma que eu vá, eu sei”.



Time Will Tell


Disparado a minha favorita do álbum! A leveza do disco surge aqui. "Time Will Tell" possui uma melodia magistral e uma letra que sugere que buscar respostas imediatas nem sempre é o mais importante, destacando a importância de aprender a conviver com o desconhecido. 


Isso fica claro em versos como “Vamos deixar indefinido até que se revele”, mostrando que a espera pode ser mais valiosa do que a pressa por certezas. Um verso extremamente alinhado à proposta do álbum.


A repetição de “only time will tell” (só o tempo dirá) é uma das minhas partes favoritas. Funciona como um desabafo e um lembrete que, de fato, o tempo é quem nos traz as respostas sobre determinadas situações e sentimentos.


O verso “Gostamos de pensar que deixamos isso para trás, mas nunca deixamos” é como um soco no estômago. Ela fala sobre a dificuldade de superar o passado e a tendência de revisitar questões não resolvidas. Celeste, nesse álbum em específico, incentiva uma visão otimista diante das incertezas. 



People Always Change


“People Always Change” cristaliza esse tema através de uma simples inversão: “As pessoas sempre mudam. Não é bom para mim, porque eu continuo a mesma”. Sobre um piano suavemente ondulante, Celeste canta sobre observar amantes e amigos evoluírem enquanto ela permanece enraizada em sua identidade.


Ela se baseia em observações simples que nos convidam a sentir o peso de permanecer imóvel enquanto tudo ao nosso redor muda. Pesadíssimo! 



Sometimes


"Sometimes” fecha a sequência que “Time Will Tell” e “People Always Change” estabeleceu. Juntas, elas são complexas, mas pacíficas - e doem na alma. A melodia calma, as notas marcantes do piano e, claro, a voz impecável de Celeste tornam essa faixa um desabafo em forma de música.



Cold Be Machine


Depois da sequência descrita, a primeira vez que uma faixa rítmica aparece é na penúltima música - o único desvio para o pop industrial do álbum. A tecnologia e suas distorções da conexão humana vêm à tona em “Could Be Machine”. Inspirada pela forma como o abuso online se infiltrou em sua vida pessoal, Celeste pergunta: “Poderíamos estar amando agora, poderíamos ser máquinas?”.


É o experimento sonoro mais ousado do álbum, pois se afasta das orquestrações exuberantes que a tornaram famosa e usa o ruído para imitar a alienação que ela sente nas redes sociais. 



This Is Who I am


Em contraste com esses experimentos, “This Is Who I Am” oferece uma declaração enganosamente gentil. “Algumas flores nunca chegam a desabrochar e ver o dia. Algumas flores se contentam em desejar que suas vidas passem depressa”, ela canta, reconhecendo que muitas histórias não são ouvidas.


Para Celeste, a identidade não é uma característica inerente, mas uma performance contínua testemunhada pelos outros. A composição aqui é direta, desprovida de trocadilhos ou qualquer coisa que possa ser considerada blasfêmia, mas seu poder reside em sua vulnerabilidade. Quando ela canta “Sem mentira, não sou menos”, soa como um encolher de ombros para aqueles que exigem que ela se diminua.




Resumo


O álbum apresenta o retrato de uma artista que reavalia sua identidade e suas prioridades criativas e pessoais. Essa demonstração pública de emoção e honestidade se desenrola de uma forma que não apenas encerra um capítulo turbulento de sua vida, mas também abre as portas para um futuro novo e empolgante.


Ou seja: às vezes, um artista não lança um segundo disco, mas sim se reconstrói. No caso de Celeste, essa reconstrução acontece em público e através da música. Simplesmente sensacional.


Celeste não negligenciou sua musicalidade. As letras certamente abrem caminho, mas, ao fazê-lo, elevam as melodias a patamares verdadeiramente belos.


Tudo isso torna o trauma que Celeste sofreu nas mãos de sua gravadora ainda mais perturbador. Esta é uma artista que se reinventou e colocou claramente a arte em primeiro plano em sua expressão criativa, e no mundo comercial, talvez isso não seja suficiente. Mas para nós, como fãs de música, posso afirmar com segurança que é absolutamente essencial. 


Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

Ao longo do álbum, os estilos variam entre canções melancólicas, lamentos minimalistas ao piano e uma pegada industrial atípica. Às vezes, essa variedade pode não soar muito coesa, mas, no entanto, as composições de Celeste são o que permite que as contradições coexistam. Em uma música, ela se apega à constância. Em outra, exige transformação. A coesão vem de sua voz (tanto literal quanto autoral), que permanece como guia constante através de diferentes paisagens sonoras.


Ela brinca com o ritmo, às vezes alongando as sílabas até que se desfaçam, às vezes apressando os versos como se estivesse perseguindo um pensamento. Ela compõe a partir da autoexposição, em vez das expectativas mais seguras de uma "cantora de baladas românticas" que antes a cercavam. A ausência de refrões grandiosos ou ganchos comerciais é intencional. Ao focar no clima e no significado, ela nos convida a lidar com o desconforto em vez de buscar recompensas imediatas.


Às vezes, um artista não lança um segundo disco, mas sim se reconstrói. No caso de Celeste, essa reconstrução acontece em público e através da música.

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