A linha tênue entre a loucura e a genialidade: analisando Flora Matos
- LUIZA HELENA DA ROCHA
- 19 de ago.
- 9 min de leitura
Depois de muito tempo esperando por esse momento, chegou o dia em que irei falar sobre ela: a polêmica e brilhante Flora Matos.

Em um mundo em que quase todo mundo age com medo dessa cultura do cancelamento, ela surge dizendo o que pensa, sem pedir licença. E isso basta para que a chamem de “louca”. Mas a verdade é que Flora não é incoerente. Ela é contundente - e, justamente por isso, incomoda.
Ano passado li uma matéria na Revista Galileu que trazia o título “A linha entre loucura e genialidade é mais tênue do que se imaginava”. Em um trecho específico, o autor escreve:
“Estudos empíricos afirmam que sim, a genialidade possui uma forte relação com a loucura. O mais importante processo entre elas é a desinibição cognitiva: a tendência de prestar atenção a coisas que normalmente seriam ignoradas ou filtradas por parecerem irrelevantes.”
Trago esse trecho em destaque porque, baseado na história e fama de Flora Matos, você vai perceber muitas e muitas pessoas a chamando de "maluca" pelas inúmeras polêmicas que ela se envolve. Mas aí é que tá! E se todo esse ataque a ela for apenas porque não querem admitir ou não enxergam o quão genial ela é? Flora vive nessa tendência de prestar atenção a coisas que normalmente seriam ignoradas ou filtradas por parecerem irrelevantes.

Ela fala o que pensa e não fala baixo. Flora não alivia suas opiniões, não tem medo do que vão falar e nem sobre quem vai falar. Se a maioria das pessoas se mantém calada para não arranjar treta, Flora não filtra a intensidade para caber no que esperam dela. E quando uma mulher não se curva, não é vista como firme, mas como instável. E, infelizmente, essa franqueza feminina é tratada como sinal de ameaça, e não de autenticidade.
O preço dessa firmeza é a reputação.
Vi um post no Instagram da comunicadora Bartira Machiaveli em que ela escreve:
"Histeria" virou "intensa", depois "descontrolada", e hoje é "louca". Um mesmo mecanismo de silenciamento com nomes novos. Em tempos de Instagram, a estética do equilíbrio pasteuriza emoções. Quem não performa esse equilíbrio é lida como falha - e Flora joga contra essa maré. Ela sente, reage e fala sem filtro. Isso ameaça a narrativa vigente. Ela não ensaia e nem edita. Sua crueza se torna ato político.
Bartira ainda ressalta a existência de uma linhagem de mulheres que não foram feitas para suavizar: Frida, Nina Simone, Clarice - todas chamadas de desequilibradas em seus tempos. Flora ecoa essa tradição. O incômodo que ela gera diz mais sobre quem a observa do que sobre ela.
Em um sistema onde a mulher precisa se manter calada para tentar ocupar algum espaço, Flora joga contra. E isso faz com que ela seja punida. A música é apenas um reflexo do que vivemos na sociedade. Então talvez o problema nunca tenha sido ela - mas o filtro que nos molda.
Não é sobre ser louca. É sobre ser livre. E num mundo que teme mulheres livres, a liberdade vira o verdadeiro escândalo. Mulheres que não se encaixam desafiam a ordem. E desafiar a ordem tem um preço - especialmente quando se faz isso em voz alta. (Bartira Machiaveli)
E, se ainda assim você me disser que ela é “louca”, eu respondo: ela é genial. Uma das coisas que mais comprova esse ponto é o fato dela ter sido pioneira em tantos aspectos dentro do rap nacional e da música brasileira em geral. E isso você vai descobrir lendo um pouco mais!
MC Flora Matos: a promessa do rap
Se é para falar da história de alguém, que seja começando pelo início. Filha do músico Renato Matos, Flora nasceu em Brasília e cresceu em um ambiente artístico. Desde pequena subia aos palcos com o pai e foi criando repertório e presença de palco.

Aos 12 anos, Flora já tinha algumas músicas escritas no violão. Mas foi aos 13 que conheceu os Racionais e começou a se envolver com o rap. Segundo ela, Milton Sales, fundador do grupo, deixou com ela por um tempo uma caixa com cerca de 200 CDs de rap nacional. “Eu fiquei muito ligada em tudo que estava acontecendo no rap no Brasil. Tipo Sabotage, Dina Di, Visão de Rua, RZO e muito mais…”, contou em suas redes sociais.
Aos 16 anos, fez seu primeiro show remunerado e já se apresentava como DJ e MC no palco. Aos 18, em meados de 2006, foi para São Paulo a convite do DJ KL Jay para gravar um remix de uma música da Céu. No mesmo ano, ganhou o prêmio de “Melhor Cantora do Ano” em Brasília, consolidando sua força na cena local.
Em 2008, Flora foi para a Europa e voltou mais preparada artisticamente. No Brasil, passou a colaborar com grandes nomes como o DJ Cia (RZO) e Don L. Essas parcerias ajudaram a inseri-la em um circuito maior do rap nacional.
Lançou em 2009 sua primeira mixtape, Flora Matos vs Stereodubs - impecável, por sinal. Esse projeto foi um divisor de águas, emplacando uma música até na rádio BBC de Londres. Com faixas como “Pretin” e “Canta pra Chamar”, ela uniu rap, R&B e eletrônico com uma pegada única.
O trabalho circulou muito em blogs e fóruns da época, ganhando destaque sem apoio de gravadoras. O verdadeiro destaque veio depois de cinco anos, em 2014, com o sucesso de "Pretin", parte da trilha sonora de "Malhação - Sonhos" (2014), que a TV Globo reprisou em 2021 durante a pandemia de Covid-19.
Em 2011, a canção já tinha rendido uma indicação ao Video Music Brasil, prêmio da MTV, na categoria Hit do Ano. No ano anterior, ela também já havia sido indicada como "Aposta MTV".
Mas foi no dia 7 de setembro de 2017 - famoso dia em que D. Pedro proclamou a independência do Brasil - que, depois de vários desentendimentos com gravadoras e produtores musicais, Flora também entrou pra história ao lançar o icônico e monumental álbum “Eletrocardiograma”, produzido inteiramente por ela, tornando-se uma artista independente.
E aí você percebe que até a data de lançamento desse disco foi genialmente pensada e carregada de significados.
O álbum recebeu diversas críticas positivas - chegando a ser eleito um dos melhores discos brasileiros do ano - e conquistou o prêmio de Melhor Álbum no Women's Music Event.
Só depois de quase três anos que, no dia 23 de dezembro de 2020, Flora lançou o seu segundo álbum, “Do Lado de Flora”, com 12 faixas que variam seus ritmos musicais entre trap, samba, grime, drill, boombap e afrobeat.
E aí eu te pergunto novamente, hoje em dia você percebe muito toda essa musicalidade nos álbuns nacionais de rap, mas quem foi uma das pioneiras? Contra fatos, não há argumentos.
E é aqui que entra o trecho destacado no começo desse texto: a tendência de prestar atenção em coisas que normalmente seriam ignoradas.
No ano seguinte, dia 28 de novembro de 2021, a cantora lançou o seu terceiro álbum (e último, até então), "Flora de Controle". O disco conta com 10 faixas, sendo 8 inéditas e 2 versões extras da faixa foco “Chá de Maçã”.
Flora lançou um desafio na internet para produtores enviarem sugestões de beats para o single quando o produtor oficial da música desistiu do trabalho e deixou a música incompleta. Após centenas de beats recebidos, 30 versões foram produzidas. Das 30, as três favoritas de Flora estão presentes no álbum. Genial.
Genialidade ou loucura
Já parou para pensar que as grandes invenções que conhecemos hoje como a energia elétrica, o telefone fixo, o telefone celular, o computador, etc... antes de serem descobertas, elas não passavam de loucura para as pessoas da época? E depois o tempo mostrou que todas essas ideias não passavam de pura genialidade.
Existe uma matéria do Portal O Globo que trata de um estudo genético que encontrou uma ligação entre criatividade e maior risco de desenvolver distúrbios mentais como esquizofrenia e transtorno bipolar. A pesquisa, feita com mais de 86 mil islandeses, indica que tanto a criatividade quanto esses transtornos podem ter uma raiz biológica comum: uma forma diferente de perceber e pensar o mundo.
Segundo os pesquisadores, isso reforça a ideia de que os distúrbios psiquiátricos podem ser extremos de um espectro de comportamentos humanos, e não doenças completamente distintas. Ou seja, a mesma predisposição genética que favorece a criatividade pode, em determinadas condições, levar ao adoecimento mental.
Bom, como dito no começo desse texto, Flora Matos é, muitas vezes, chamada de "louca" nas redes sociais e nos espaços midiáticos - uma palavra que é usada com frequência de forma pejorativa para deslegitimar mulheres que se expressam de forma contundente, especialmente quando desafiam normas estabelecidas. No entanto, esse rótulo parece ignorar o que há de mais potente em sua trajetória: uma genialidade artística diferente de tudo que costumamos ver e ouvir.
Como mostra o estudo citado, há uma possível conexão genética entre criatividade e transtornos mentais - uma inclinação a pensar fora da curva que, quando mal compreendida, pode ser confundida com desvio, com excesso, com "loucura". Ou seja, não estou aqui pontuando que a Flora vive nessa linha tênue entre a loucura e a genialidade. Estou falando que as pessoas tendem a confundir o que ela faz e é justamente por existir essa linha.

Flora pensa diferente. E justamente por isso criou caminhos únicos dentro do hip hop nacional. Sua lírica é marcada por uma sensibilidade que mistura força e vulnerabilidade, um domínio estético que une R&B, trap, samba, grime e boom bap com fluidez. Ela foi uma das primeiras mulheres a ocupar um espaço de protagonismo no rap brasileiro sem pedir licença, compondo, produzindo e se posicionando com a mesma intensidade.
A verdade é que, em um cenário historicamente dominado por homens, Flora enfrentou preconceito, silenciamento e críticas por ser direta e por não se encaixar nos moldes esperados. Ainda assim, construiu uma obra respeitada por sua originalidade, que virou referência para uma nova geração de artistas.
Assim como tantos gênios que vieram antes dela, Flora Matos incomoda, e esse incômodo é sintoma do novo, do autêntico, do pensamento que rompe com o lugar-comum. A fronteira entre o gênio e o “louco” talvez seja justamente essa: uma mente que enxerga o mundo sob outra luz. E Flora não só enxerga, ela transforma essa visão em música. Transforma em obra de arte.
Flora é detestada por muitos por não baixar a cabeça pra ninguém. Por falar o que todos tem medo de falar. Por criar aquilo que todos sonham em criar.
Abrindo as portas do rap feminino
Você já se perguntou como o rap feminino se portava há mais de 15 anos atrás? Hoje, felizmente, temos o prazer de ouvir as grandes mulheres dessa geração no topo das paradas, mas nem sempre foi assim. E se hoje as coisas mudaram, é porque alguém teve que andar para que elas pudessem correr. Uma dessas pessoas foi ela: MC Flora Matos. Em uma entrevista de 2009 sobre Flora, há mais de 16 anos, o redator abre o texto dizendo:
Muita gente insiste em repetir o chavão de que essa geração está perdida. Esse mesmo povo adora dizer que os jovens não se mobilizam para nada, que não têm voz ativa e que sabem apenas consumir. Para provar que eles estão mais que enganados, de Brasília vem um exemplo que transborda atitude: a MC Flora Matos.
Flora sempre foi vista como promessa. E essa promessa deu certo e rendeu BONS (em caixa alta mesmo!) frutos. Nessa época, quem via Flora Matos no palco não acreditava que ela era tão jovem. Com um discurso firme desde sempre, ela já encantava com a sua levada melódica e letras que remetiam ao amor, ao cotidiano e às mudanças constantes em sua vida.
Em outro trecho da entrevista, o entrevistador reforça: seus sonhos não são tão comuns como os de garotas da sua idade, mas talvez possuam horizontes mais distantes. E é ai que Flora diz: “Um exemplo de sonho? É ver mais meninas transformando seus sonhos em realidade”.
Pois eu afirmo que, 16 anos depois, esse sonho se tornou realidade. Flora abriu portas para muitas e muitas meninas e mulheres dentro do rap.
E se é pra voltar ao passado, saca só esse trecho de uma entrevista do Emicida (sim, ele mesmo!) em 2011:
... Em uma dessas rodas, conheceu Emicida, para quem Flora tem um potencial criativo incomum.“O grande lance é que ela não é uma mina que fica reclamando que é mina. Tem umas garotas que cantam ‘eu sou mina, mas também represento’, ‘quero meu espaço’, essas coisas. A Flora canta de igual pra igual com qualquer MC, seja o Mano Brown ou um moleque de 15 anos”

Nessa época, Emicida dizia que Flora era uma grande promessa e tinha um potencial criativo genial. Ele estava certo. Hoje, depois de inúmeras tretas entre os dois, passou a chamá-la de “maluca” por aí - e, consciente ou inconscientemente, incentiva outros a fazerem o mesmo. Por isso eu digo: a linha tênue entre a loucura e a genialidade está em quem julga, e não em quem se diz julgar.
Emicida é um gênio da música brasileira também, que fique claro. Mas Flora também é.
"Tentaram me impedir de chegar, mas eu sempre chego"
É o que Flora canta na letra de "Finge Que Me Odeia", música presente no álbum "Flora de Controle", mostrando a personalidade de quem não se curva. Flora desafia limites e mostra sua genialidade mesmo quando querem silenciá-la. Cada obstáculo, cada crítica e cada tentativa de confiná-la a expectativas alheias só reforça a intensidade de sua presença.
O que chamam de “louca” muitas vezes é apenas quem ousa pensar diferente, quem sente e age sem filtros, quem transforma sua visão do mundo em música. Flora chega não por acaso, mas porque sua criatividade não se contenta com limites; porque sua voz é mais que necessária para milhares de meninas e mulheres que sonham em viver do rap.
Por fim, ela atravessa essa linha tênue entre o que é chamado de genialidade e de loucura, porque ser intensa, firme e criativa não é defeito, é dom. E, se quem critica quer saber como fazer igual, lamento: é preciso nascer de novo. Flora, máximo respeito! Você é genial.




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